Com apoio da Prefeitura e voluntários, ‘Estrelas do Mar’ tem transformado vidas

Agência Aracaju de Notícias
14/03/2020 05h00

A empatia é sinônimo de compreensão, mas, além da semântica, o essencial trata-se, fundamentalmente, da capacidade de se colocar, se ver, no lugar do outro. A empatia sensibiliza, cria a coragem necessária para agir. Muitas vezes parte de uma ação individual que se coletiviza, conquista adeptos, colaboradores. É o caso do projeto Estrelas do Mar, que disponibiliza aulas de bodyboard, gratuitamente, para deficientes físicos e intelectuais.

Dada sua importância social, a iniciativa é apoiada pelo programa Praia para Todos, da Prefeitura de Aracaju, a partir do qual o gestão municipal adquiriu e doou 30 pranchas de bodyboard, 10 cadeiras de rodas anfíbias, 50 camisas com proteção ultravioleta, e disponibiliza um micro ônibus, fundamental para auxiliar o deslocamento das famílias assistidas pelo projeto.

Além do suporte dado pela Prefeitura, toda a ajuda necessária para levar lazer e esporte àqueles que são beneficiados pelo projeto é feita de forma voluntária. São dezenas de pessoas, de diversas idades, com pessoas deficientes ou não em suas famílias, que se unem nas manhãs de sábado para compartilhar momentos de felicidade e exercitar o altruísmo.

O pioneiro entre estes voluntários é o próprio idealizador do Estrelas do Mar, Byron Santos. Seu intuito inicial, ainda em 2011, junto ao seu primo Aílton, era trabalhar com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social na região onde cresceu, o bairro Atalaia. A proximidade do mar, junto com a habilidade dos dois com a prancha de bodyboard, assim como a sensação de que os iniciados no mundo do crime eram cada vez mais jovens, os motivavam.

No entanto, a vida nem sempre se desenvolve de acordo com aquilo que se planeja. Pouco antes de levar as ideias à prática, Aílton, quando saía do trabalho, deparou-se com uma tentativa de assalto a uma criança de 11 anos, por um adolescente de 14, e decidiu intervir em favor da vítima. O roubo não foi consumado, mas transformou-se em homicídio. O ato de heroísmo tirou a vida de Aílton e as circunstâncias foram determinantes para mudar os rumos do projeto.

“A investigação mostrou que a motivação para o assalto e consequente morte foram seis reais e um aparelho celular, que seriam trocados por drogas. Depois disso, percebi que não tinha mais condições de tocar o projeto como nós pensamos inicialmente, com aquele mesmo tipo de público. Para tentar homenagear o Ailton, que tentou defender alguém ao qual não tinha nenhum tipo de vínculo sanguíneo ou amizade, fazer algo do bem a um desconhecido, fez com que eu criasse o Estrelas do Mar como ele é hoje”, conta emocionado Byron.  

Formatação do projeto
A dor da perda não paralisou Byron, que junto à esposa, Anne Bastos, e alguns amigos, começaram a pesquisar diversas deficiências. Consultaram os conhecidos das mais diversas áreas, como Assistência Social, Medicina, Educação Física, e prepararam um estudo, apontando os benefícios, tanto físicos quanto psicológicos, que a prática do esporte aquático poderia trazer para a saúde das pessoas deficientes.

Munidos do conhecimento adquirido, apresentaram a ideia na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) a oito famílias. Na aula inaugural, 28 compareceram e hoje cerca de 130 estão cadastradas.

Foi preciso pouco tempo para perceber que não era apenas o aumento da auto estima, o fortalecimento muscular e o ganho de equilíbrio que unia a todos nas manhãs de sábado, no mar. “Algumas pessoas acham que o que nós fazemos é uma espécie de doação, ou favor, porque não fazem ideia de que é uma troca. A sensação de felicidade que um voluntário sente, de poder compartilhar tempo, que é algo tão precioso, não pode ser reposto, para ajudar, melhorar a vida de alguém, é que a grande chave de tudo”, explica Byron.   

O medo e o sonho  
Naquela primeira reunião na Apae estava Gisélia dos Santos, mãe do Igor Eduardo, um garoto down com 9 anos de idade. Ela se interessou pela iniciativa, mas tinha um questionamento: mesmo com quase três anos e ainda sem andar, seria possível seu filho participar? O que escutou de Byron, no momento em que apresentou sua apreensão, define a filosofia do Estrelas do Mar. “É um lugar para todos”.

O medo não era injustificado. Gisélia já tinha três filhos, quando engravidou aos 46 anos. Foi uma gestação complicada, que ela só descobriu quando estava com cinco meses. Apesar dos fortes enjoos, cólicas e cansaço, tudo deu certo e seu filho nasceu com saúde, mas com uma surpresa. A assistente social da maternidade foi quem lhe noticiou que Igor era “especial”.

“A verdade é que eu saí de mim quando recebi a notícia, não sabia como reagir, a ficha demorou a cair. Eu fiquei com muito medo, por causa da minha idade e também porque nunca teve ninguém na minha família com down. Eu não sabia nada da síndrome, achei que teria que me mudar para outra cidade para cuidar dele, tudo isso me deixava com bastante medo. Além disso, muitos maridos vão embora quando descobrem que serão pais de crianças deficientes, então tinha a questão de ficar sozinha”, lembra.

A angústia, no entanto, não se converteu em realidade. Tanto seu companheiro manteve-se ao seu lado, ajudando em tudo que podia, quanto todos os serviços de que necessitou e necessita pôde acessar na sua cidade natal, gratuitamente, por meio da rede municipal de Saúde.

Conseguiu ainda mais quando participou daquela reunião oito anos atrás. “O Estrelas do Mar é muito importante para minha família. Eu me lembro bem do dia que Igor começou a andar, em um sábado de projeto, dando os primeiros passos com Byron”, conta.

Mãe e filho moram na comunidade Coqueiral, no bairro Porto Dantas, zona norte da capital. De sua casa até a Aruana há uma distância aproximada de 20 quilômetros. Acontece que os mais de trinta anos de trabalho como diarista lhe providenciaram apenas a determinação necessária para encarar qualquer desafio.

“Eu acordava bem cedo para sair de casa antes de 7 horas, porque precisava pegar três ônibus, quase todos lotados, porque todo mundo quer ir para a praia no sábado, e queria chegar antes das 10 horas. Pra ser sincera, as vezes até pensava em desistir, mas quando lembrava como Igor ficava ansioso para ir, sempre mudava de ideia”, afirma.   

Transporte
O tempo do verbo empregado por ela reflete o fruto da ação do poder público, de quando ele é utilizado como um catalisador para as boas iniciativas da sociedade civil.  Gisélia e Igor, assim como outras famílias, não passam mais horas para se deslocar, uma vez que a Prefeitura de Aracaju garante um micro ônibus para atendê-los. É maravilhoso, a gente pega perto de casa, vai estar lá sempre, então temos a certeza de que poderemos ir ao projeto”, explica.

Com o passar dos anos o medo foi se transformando em esperança, com Igor à tira colo, Gisélia conclui o ensino médio, aos 56 anos, e pretende prestar vestibular para cursar Assistência Social. “Meu sonho é poder ajudar aos outros como eu fui ajudada. Quero ser assistente social e trabalhar no posto do meu bairro. Se Deus quiser vou conseguir”, diz.

Os sonhos desta aracajuana não se restringem a ela mesma. Ao testemunhar a evolução de Igor, ela cria cada vez mais fé de que seu filho poderá viver uma vida plena, sendo respeitado como cidadão e consciente de seus direitos e deveres.

“Quando eu percebi que ele estava copiando do quadro pro caderno, matemática, português, tudo direitinho, foi o momento mais feliz da minha vida. Pensei assim: ‘agora sim! tudo vai dar certo!’. Igor ama dançar, se pintar como palhaço, acho que ele tem talento para teatro. Quem sabe não vira um ator?!”, confia.   

Florescer da vida
Quando Ana Xavier, brasiliense, engravidou pela terceira vez, em 1988, após alguma dificuldade para que a fecundação ocorresse, estava exultante de alegria. No entanto, por volta dos quatro meses de gravidez, contraiu rubéola, o que a fez ter complicações de saúde e a deixou apreensiva em relação ao seu bebê. Os médicos afirmavam que a criança poderia nascer com alguma má formação congênita, o que poderia ocasionar surdez ou cegueira.

No entanto, quando a Priscila nasceu, nada disso foi constatado. Até os três meses de idade parecia o alarme causado por ter contraído a rubéola não se confirmaria. Então, após uma cirurgia de hérnia inguinal, coincidiu da medula parar de repassar as informações do cérebro para o restante do corpo. O diagnóstico foi tetraplegia. A causa foi uma falta de oxigenação do cérebro, não se sabe se exatamente após o parto ou pouco depois.    

Ainda em Brasília, um neuropediatra mapeou o cérebro da criança, quando identificou duas calcificações, uma no lado esquerdo, severa, e outra no lado direito, mais suave. Na época, explicaram a Ana que o hemisfério esquerdo era responsável pela criatividade, enquanto o direito pela lógica. Então, a sua filha não desenharia ou faria música, ou qualquer tipo de arte.

Os prognósticos dos especialistas eram sempre duros, testes para a perseverança da Ana. “Não vou dizer que todo dia eu acordava maravilhosa, a gente que é mãe começa a se culpar, a pensar no que teria feito de errado. Mas então eu pensei: ‘poxa, eu não pedi tanto um filho?’ Nem tava pedindo nada perfeito. Deus me mandou aquilo que eu tanto queria, por isso eu não desvaneci”, conta.

Com o passar do tempo, todavia, mãe e filha se especializaram em desafiar prognósticos. Se um médico dizia que a Priscila viveria até os sete anos, outro, posteriormente, que seria até os quinze no máximo, hoje ela tem 30 anos, e esbanjando saúde. “Eu sempre fui uma pessoa muito teimosa, nunca aceitei o que algumas pessoas diziam.  Sempre achei que ela precisava tentar tudo. Então ela foi a escola normalmente, concluiu o segundo grau, fez aulas de desenho, design web e costura”, explica Ana.

Às vezes adotar o caminho da teimosia é a única alternativa para chegar no improvável. Ele aconteceu. Da tetraplegia, após muitos anos de esforço e tratamento, o quadro de Priscila regrediu para um triplegia com comprometimento leve, o que a permitiu movimentar parcialmente seus membros superiores. O suficiente para contrariar outro dos prognósticos.

Priscila é uma mulher de 30 anos, jovem adulta, que ama Legião Urbana, Leonardo Da Vinci e gótico lírico. Hoje, faz desenhos realistas, retratos, assim como croquis, e costura. Utiliza toda sua criatividade e planeja lançar uma linha de roupas acessíveis, voltadas a pessoas com paralisia cerebral.

A vontade surgiu de uma situação insólita. Em uma loja de shopping, em Aracaju, buscava uma roupa “mais feminina”, quando escutou de uma vendedora que “para pessoas como ela só havia roupa infantil”. “Na hora me deu um clique. Pensei que já que era desse jeito iria criar minhas próprias roupas e que, se acontecia comigo, deveria acontecer com outras pessoas. Foi assim que surgiu minha vontade de fazer moda inclusiva. Esse movimento de criar me força a ter uma mente mais saudável, por isso que eu faço música, desenho e costuro. É uma forma de me expressar e estar sentindo que consigo mostrar meu potencial às pessoas. Isso é muito importante, porque muitos desconhecem as condições, acham que ‘não valemos nada’, que somos dignos de pena e isso é muita ignorância”, conta.

A Priscila capaz de preparar uma coleção de moda, contudo, é uma faceta recente. Na verdade, o caminho dela se cruzou com Byron, os voluntários do Estrelas do Mar e Aracaju em um momento difícil. “ Eu reparei que a Priscila não estava bem, não queria comer direito, estava bastante introspectiva, para baixo. Foi diagnosticada com depressão. Um dia, por ter família em Aracaju, vim fazer uma visita, ver se melhorava o astral. Soube do projeto e fui conferir. Isso mudou tudo, vi a volta da felicidade no rosto dela, por isso, decidi me mudar para a cidade”, conta a mãe.

A estilista lembra bem do momento e da transformação que sentiu, tanto pelo afeto que recebeu, quanto contato que teve com a natureza. “Foi a primeira vez que eu entrei no mar sozinha, quer dizer, tinha gente por perto, mas eu é que controlava. Por causa do Estrelas do Mar. Eu sinto que aqui se pode ser quem você é, se respeita a deficiência de cada um. Todos nós somos diferentes, mas estamos juntos, conseguimos nos compreender, queremos o bem uns dos outros”, ressalta.