Patrulha Maria da Penha: Judiciário e Prefeitura de Aracaju atuam para salvar vidas e acolher

Agência Aracaju de Notícias
27/10/2021 17h30

Foram mais de 20 anos de relacionamento. As marcas físicas que muitos associam à violência para, assim, validá-la não estavam estampadas no rosto, mas o dano emocional e psicológico foi sendo aberto, ano após ano, na rotina de Andrea Goes, de forma silenciosa, imperceptível aos olhos externos. Somente no início de 2020, enquanto a pandemia do novo coronavírus se iniciava no Brasil, a chave virou, a denúncia foi feita e, em menos de 24 horas, a Justiça concedeu a medida protetiva que garantiu a Andrea a possibilidade de contar com a Patrulha Maria da Penha, serviço ofertado pela Prefeitura de Aracaju, por meio da Guarda Municipal (GMA), em parceria com o Tribunal de Justiça de Sergipe (TJ/SE).

“Estávamos em estados diferentes, eu no Rio de Janeiro com o nosso filho, e ele em Aracaju. Ele reduzia cada vez mais os valores monetários que enviava e percebeu nisso um controle, para que ficássemos cada vez mais dependentes dele. Um dia, ela chegou no Rio e não tinha mandado o dinheiro da comida, e eu estava chateada por isso. Quando fomos conversar, ele veio jogar acusações em cima de mim. Eu me sentia muito humilhada. Começamos uma discussão e foi pelo caminho das ofensas. Ele começou a falar mal do meu corpo, dizia que tinha nojo de mim. Ele me pegou, chacoalhou e, enquanto eu tentava sair de perto dele, notei que ele estava excitado. Fiquei chocada com aquilo. Me pareceu a coisa mais doentia que eu já tinha visto, mas era mentira, eu já tinha visto isso nele outras vezes, só que, naquela vez, me despertou a repulsa que sempre deveria ter despertado. Saí de casa com a bolsa e a roupa do corpo”, recorda Andrea.

De volta a Aracaju, ela conseguiu tomar o passo que cessaria o ciclo de violência que enfrentava, depois de tantas outras tentativas de pôr fim ao relacionamento abusivo que vivia desde os 22 anos de idade. Sua atitude e a resposta rápida da Justiça evitaram que, em plena pandemia, com a recomendação do distanciamento e do isolamento social, ela ficasse confinada junto ao seu agressor.

Andrea entrou para as estatísticas da violência contra a mulher, no vocabulário da saúde pública tida como uma hiperendemia que, ao contrário de uma epidemia, cuja enfermidade avança de forma delimitada de tempo, se refere à manutenção, em altos patamares, de uma doença social que se manifesta com periodicidade.

De acordo com dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP/SE), em 2020, foram 6.379 registros entre as dez ocorrências com maiores índices relacionadas à Lei Maria da Penha, entre elas, ameaça, lesão corporal, vias de fato, perseguição e descumprimento de medidas protetivas de urgência. Até setembro de 2021, foram 6.209 registros.

Para as mulheres que conseguem sair do relacionamento, a Justiça e o poder público são os únicos suportes que podem garantir a continuidade de suas existências longe daqueles que atuaram, seja de forma física, emocional ou psicológica, para cercear o direito básico da vida e da liberdade.

Ainda conforme dados da SSP/SE, em 2020, 14 mulheres não puderam desfrutar desse direito e foram vítimas de feminicídio. Em 2021, de janeiro a junho, foram oito as vítimas desse crime.

Neste ano, a Lei Maria da Penha completou 15 anos. Ao longo desse período, as discussões e movimentos a favor dos direitos das mulheres possibilitaram a criação de outras leis e redes de serviços de proteção às mulheres, a exemplo da própria Lei do Feminicídio.

Patrulha Maria da Penha
A partir da Lei Maria da Penha, foram abertos outros caminhos para que iniciativas como o grupamento da GMA, que recebe o nome da mulher símbolo do combate à violência doméstica e familiar, pudessem acolher mulheres como Andrea. Lançada em maio de 2019, a Patrulha Maria da Penha não só assegura o cumprimento da medida protetiva, mas acolhe a vítima de violência.

“A Patrulha foi um alívio na minha vida porque eu trabalhava na outra ponta do sistema, como advogada. Em 2014, eu me engajei na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e, a partir daí, comecei a perceber as nuances de violência, de passivo-agressividade, de violência psicológica, moral, patrimonial, fui me identificando. Esse processo de me identificar e ter a coragem de denunciar é demorado. Você vai meio que ruminando isso até chegar num ponto em que você entende que não consegue mais continuar na relação. A violência física tem um amparo muito mais rápido porque está visível. Foi a partir da Patrulha que eu senti que, finalmente, alguém entendia o que estava acontecendo. Na violência doméstica as coisas são muito sutis, então, a Patrulha tem a sensibilidade de perceber que não é o fato dele não ter vindo mais em casa que me coloca em segurança. Os guardas analisam todo o contexto do comportamento dele, inclusive nos processos, daí percebem um potencial de violência muito grande”, considera Andrea.

Hoje, amparada pela Lei, ela relembra que, no momento em que fez a denúncia viu o olhar sentenciador de muitas pessoas ao redor, mas a sentença não era para o seu agressor, mas para ela.

“É muito difícil fazer uma denúncia de Maria da Penha porque as pessoas não entendem, especialmente quando a vítima tem uma formação, já atuou muito tempo nessa área. Muitas pessoas me julgaram, muitas acreditam até hoje que não aconteceu, que eu não passava por violência. Uma delas disse que eu não tenho perfil de quem sofre violência, e não existe perfil”, desabafa a advogada.

Ao longo dos dois anos de existência da Patrulha Maria da Penha, os registrados comprovam o que Andrea afirma: não existe um perfil único de quem sofre agressão. Conforme os dados da GMA, de maio de 2019 a setembro de 2021, 98 mulheres foram assistidas, sendo que 28 delas seguem ativas no serviço. As idades variam entre 15 e 77 anos de idade. Ainda que a maioria seja de bairros de Aracaju socialmente mais vulneráveis, como Santa Maria, Santos Dumont, Bugio e Porto Dantas, existem também assistidas de bairros de classes sociais mais altas, a exemplo do Grageru, Getúlio Vargas e Atalaia.

Ainda de acordo com a GMA, as assistidas são mulheres com ocupações diversas. Donas de casa são mais frequentes, mas o serviço já atendeu advogada, empresária, enfermeira, costureira e estudante e, segundo o formulário preenchido pelas assistidas, 46% delas possuem nível médio de escolaridade, 34% possuem nível fundamental e 20% nível superior.

Humanizar para acolher

Prefeito de Aracaju desde 2017, Edvaldo Nogueira participou das tratativas e acompanhou todo o processo de formulação da Patrulha Maria da Penha. Hoje, ressalta a experiência exitosa, quando a guarnição realizou sete das 12 prisões por quebra de medida protetiva.

“A violência contra a mulher é um chaga que atormenta a sociedade moderna, tem deixado marcas muito profundas na sociedade e é preciso que nós combatamos esse mal de maneira muito concreta. A Patrulha tem sido um instrumento muito importante, neste sentido. Primeiro porque acolhe as mulheres vítimas de violência. Segundo porque dá um apoio cotidiano nas visitas que faz aos domicílios. Terceiro porque encoraja as mulheres, dando segurança, fazendo com que elas resistam, recuperem sua autoestima para que elas possam, inclusive, denunciar de forma mais efetiva a violência sofrida. Atualmente, estamos trabalhando na gestação de outra política pública que é a educação dos homens. Precisamos fazer um centro de acolhimento porque o agressor precisa de formação, de aconselhamento e apoio psicológico. O futuro está na igualdade entre homens e mulheres”, aponta Edvaldo Nogueira.

Para prestar o devido suporte às assistidas, os guardas passaram por um ano de treinamento, como explica o secretário municipal da Defesa Social e Cidadania, Luís Fernando Almeida.

“Não se pode entrar em uma seara tão delicada sem uma devida preparação. Além dos problemas que chegam ao nível físico, a agressão psicológica é muito grave, é muito séria e precede a agressão física. Além disso, o ambiente familiar é todo contaminado, os filhos veem tudo. Portanto, a preparação para lidar com isso, não só da guarda, mas de toda uma rede, é imprescindível. A Patrulha não foi apenas um assinar de convênio, foi um comprometimento, um entrelace das equipes que estão subordinadas à Prefeitura e ao TJ para que tudo corra da melhor maneira possível e tenha êxito, cada dia mais. Sabemos que é algo ainda muito pequeno e gostaríamos de ter uma abrangência muito maior, mas é um passo, são exemplos que vão se fazendo, que vão se fortificando e espalhando esses frutos por outros lugares”, acentua o secretário.

Com vistas no aperfeiçoamento do serviço, os guardas que fazem parte da Patrulha recebem treinamentos constantes, como aponta o diretor-geral da GMA, subinspetor Fernando Mendonça.

“A partir do momento que esses guardas são capacitados eles têm uma visão diferente do trabalho. Os treinamentos são periódicos. No primeiro momento, foram dirigidos pelo TJ e, de forma recorrente, fazemos treinamentos para atualizar os guardas municipais sobre novas legislações e ações de rotina para criar uma padronização desses atendimentos, de maneira a ter uma melhor aproximação com essas mulheres, um trabalho de acolhimento, de fato”, explica Mendonça.

À frente da PMP, a coordenadora Vileane Brito conta que o olhar humano é indispensável para o trabalho realizado.

“Elas são encontradas em completo desolamento e chegamos para dizer que não estão sós e que é possível recomeçar, criando vínculo com essas mulheres. A Patrulha, além de salvar vidas, tem uma responsabilidade social, educativa, preventiva. Como mulher, me sinto ainda mais responsável por estar à frente da Patrulha. Para mim, defender essas mulheres é uma questão de honra. A troca estabelecida com essas mulheres nos dá a oportunidade de aprender o sentido de ressignificar, observando e estando ao lado durante o processo de superação, dando outro sentido ao sofrimento. É uma educação que estamos construindo contra a violência doméstica e familiar. Nosso desafio é tirar a lei do papel e colocar na prática, e com o suporte e comunicação junto ao TJ podemos viabilizar essa ação”, acrescenta Vileane.

Fazer justiça
A violência contra a mulher ocorre em grande parte dos casos dentro do território domiciliar, local onde a mulher mais ficou durante a pandemia. Esse dado foi levado em consideração pelo TJ/SE, tanto que as medidas protetivas não tardaram em ser concedidas.

“O Tribunal de Justiça sempre se preocupou com a aplicação da Lei Maria da Penha, em projetos que diminuíssem os ataques, as agressões, os crimes que são praticados contra as mulheres. Assim, o Tribunal tem procurado unir esforços. A Patrulha se encaixa perfeitamente no trabalho de desconstrução dessa cultura machista e na construção de uma nova proposta de sociedade. Para isso, se faz importante cuidar da mulher e educar o homem. A violência contra a mulher é um caso de vida ou morte, literalmente. Também por isso, o Tribunal atua para garantir a celeridade no atendimento. Se o tribunal não tiver essa preocupação de atender com tempestividade, perde-se a finalidade do pedido e a urgência”, pondera o presidente do TJ/SE, desembargador Edson Ulisses de Melo.

A juíza Rosa Geane Nascimento, coordenadora da Mulher do TJ/SE, avalia que a violência contra a mulher é praticada de diversas formas e a quebra do ciclo se mostra um desafio para a vítima.

“Vemos muito julgamento das mulheres e pouco acolhimento. Muitas vezes, quando a mulher fala, ela é desacreditada porque, fora de casa, aquele agressor tem outro tipo de comportamento, bom filho, bom trabalhador, bom amigo. A mulher se sente culpada e, em alguns casos, ela vai colocar na cadeia o pai dos filhos. É um tipo de violência muito complicada de se trabalhar, por isso que a ajuda psicológica, sobretudo, lá no início, é tão necessária. A Patrulha ajudou imensamente nisso, e ela está dentro dos programas do artigo 35 da Lei Maria da Penha, que dispõe sobre o atendimento integral e multidisciplinar da mulher”, analisa a magistrada.

A juíza detalha que as mulheres encaminhadas pelo TJ para serem assistidas pela Patrulha são as que possuem risco de morte e o acompanhamento feito é encaminhado mensalmente ao juizado responsável.

“A pandemia mudou a esfera da igualdade das mulheres. Diz que a mulher, após a pandemia, para atingir a igualdade tem que esperar 130 anos, antes era menos de 100. Durante a pandemia, se mostrou que temos uma pandemia da violência doméstica, dentro da pandemia de saúde, isso dito pelos órgãos internacionais. É preciso que se faça hoje para mudar essa realidade de violência e a Patrulha é um passo importante, mas sabemos que o caminho da erradicação da violência contra a mulher é longo, porém a Justiça tem como papel garantir e efetivar a Constituição, nela está descrita a igualdade de gêneros, o direito humano a uma vida digna, livre e igualitária a todos os cidadãos”, completa a juíza.

Para uma vítima, o fim do ciclo de violência significa não somente a garantia da vida, mas um renascimento.

“Eu não teria conseguido se não fosse esse suporte, se eu não tivesse tido uma medida protetiva imediatamente concedida pela Justiça. Eu voltei para Aracaju e eu já tinha a medida. Quando ele retornou, não teve a oportunidade de voltar para casa, como ele fez das outras vezes. Já aconteceu de eu tentar me separar e ele dizer que não iria sair de casa. A gente só recorre à Justiça quando já tentou outros caminhos muitas vezes. Hoje com o que vivenciei, homem nenhum mais vai fazer isso comigo”, assevera Andrea Goes, hoje, longe de um relacionamento abusivo. 

Por Thamires Fonseca