Por Allan Carvalho
Padre desde 1968 e nomeado bispo auxiliar em 1982, no Rio de Janeiro, Dom José Palmeira Lessa foi bispo de Propriá por oito anos e há 11 é o arcebispo de Aracaju. Mesmo atarefado, o alagoano de Coruripe que resolveu seguir carreira eclesiástica reservou um tempo para conversar com a equipe da Agência Aracaju de Notícias (AAN) sobre a religiosidade do povo nordestino, as fortes tradições católicas dos aracajuanos, e sobre como grandes festas como o Forró Caju vêm influenciando a forma de comemorar o periodo junino entre das famílias.
Entusiasta dos festejos juninos, Lessa também lembrou com saudades a forma como as famílias celebravam Santo Antônio, São João e São Pedro. Entre outras considerações, ele destacou que as comemorações do mês de junho sempre serviram como um espaço agregador da comunidade e também para reforçar a fé divina, pelo exemplo de vida dos três santos, incutidos aqui durante a colonização portuguesa. O arcebispo defende a função social das manifestações culturais e religiosas e ataca a forma como as festas cristãs têm sido desviadas pelo consumismo e deturpadas pelo sexo e as drogas.
Agência Aracaju de Notícias (AAN) - Por que os santos do ciclo junino são tão queridos entre os nordestinos?
Dom José Palmeira Lessa - Temos que olhar a história dos santos segundo aquilo que eles foram na época deles. Outro aspecto é a influência espiritual que eles tiveram no coração do povo e o que esse povo depois exprimiu em forma de arte, em forma de cultura, de movimentos culturais, e o sentimento que tinha em relação aos santos. O Nordeste está cheio dessa cultura. Temos por aí a Festa de Reis, por exemplo, que retrata a questão dos Reis Magos e você encontra essa devoção. A mesma coisa é com São João, Santo Antônio e São Pedro. Quando se iniciou a evangelização no Brasil, os portugueses trouxeram a fé nesses santos. Claro que quando os colonizadores chegaram, eles já tinham 1500 anos de história de cristianismo, de convivência deles com a espiritualidade com os santos no coração.
Os missionários portugueses trouxeram para o Brasil esse tipo de cultura religiosa que caia no sentimento do povo. Essa religiosidade atendeu muitas vezes, durante muitos séculos, às aspirações humanas do povo diante de doenças, desastres e outras ameaças. Então esses santos todos têm por trás esse crer do povo na ação deles de intercessores junto a Jesus. A religiosidade ficou no coração das pessoas que aqui se criaram. Isso vem da pregação do evangelho e de uma religiosidade popular em torno desses santos, pois eles eram mais populares entre aqueles que chegaram para fazer a pregação, mas foram as pessoas que ficaram que sustentaram a fé.
AAN - Como foram escolhidos os dias para homenagear cada santo?
Dom Lessa - Normalmente os dias em que se lembra aquele santo é o dia que marcou a morte da pessoa. Para o cristão, a morte não é apenas morte, é a transferência de moradia daqui para a glória de Deus. Por isso, o martírio de São Pedro se comemora dia 29 de junho, e o de São Pedro, no dia 24. O mesmo vale para Santo Antônio, que faleceu, segundo a história, no dia 13 de junho. Essas datas marcaram o dia em que eles morreram neste mundo e nasceram para a fé; abandonaram tudo aqui para entrar na salvação definitiva.
AAN - Como isso se converteu numa festa tão grande e presente, especialmente no Nordeste?
Dom Lessa - As pessoas recorriam muito à intercessão dos santos diante de Deus e eles conseguiam muitas graças. Naturalmente, depois daquilo, eles retribuíam com a construção de uma Igreja e também com um movimento folclórico de dança, de canto, de representação teatral, de culinária, e viam que aquilo era importante, pois congregava o povo. Unia o povo, unia as famílias, colocava junto para preparar as comidas, a música e o espaço, e isso ia influindo na vida deles, pois se a religião não influi na vida, para que serve?
Na medida em que os fiéis iam alcançando as graças, eles iam agradecendo, se alegrando de várias maneiras. Não era aquela coisa vazia! E essa é uma característica do povo nordestino e do povo português. Naturalmente, aqui isso foi sofrendo modificações, mas o espírito foi esse mesmo. É claro que no decorrer da sua história, cada povo, segundo sua cultura, coordena a sua espiritualidade. No entanto, cada um trabalhou a sua espiritualidade e a transformou em ritos populares, em danças, em vestidos e coreografias. E os festejos juninos são uma mostra brasileira disso! Por trás dessa festa tem toda essa realidade de amor à Palavra de Deus que o povo cristão intuiu e desdobrou depois em gestos humanos, em relacionamento. É muito bonito tudo isso.
AAN - O que essas manifestações do período junino trazem da mensagem festiva cristã?
Dom Lessa - As grandes manifestações católicas, como o Trezenário de Santo Antônio em Aracaju, que ocorre neste mês de junho, demonstram isso. É também em eventos como esse que o grande público renova seu contato com a Igreja. Há ainda as festas nas paróquias por São João e por São Pedro. Da mesma forma, podemos ver em outras cidades de Sergipe ao longo do ano as festas de Nossa Senhora da Conceição, de Bom Jesus dos Navegantes, de Santana, de Nossa Senhora do Carmo, de Divina Pastora... Isso acontece também em outros lugares do Brasil. Veja em Aparecida (SP): vão milhões de pessoas todos os anos. São multidões!
É também em momentos como esse que os valores da palavra de Deus que Jesus viveu e pregou são propostos ao povo e essas multidões todas vão recebendo os ensinamentos cristãos e vão revivendo as luzes e o encaminhamento. Todas essas festas têm esses valores muito importantes de canalizar aquilo que pode ser alicerce de luz para as pessoas. Mas isso cabe a cada um, pessoalmente e na sua família, e depois na continuidade em pertencer a uma comunidade religiosa, na sua Igreja. As festas têm uma incidência muito grande. Esses movimentos aí ainda ajudam o povo a fazer referência ao sagrado, a Deus, a Jesus, ao Divino; a fazer referência também a cada santo, aquela pessoa que viveu em intensidade a sua fé e os valores que essa fé trouxe para ela. Isso é fundamental.
AAN - Como era o São João de outros tempos? O que ainda se conserva daquele tipo de festa?
Dom Lessa - Ainda hoje tem um pouco daquele tempo, mas muito menos. Eu lembro que quando era criança a gente ia à catequese aprender quem era São João, quem era São Pedro, quem era Santo Antônio. Já ali os mais velhos iam apresentando tudo isso à gente. Depois tinham os festejos litúrgicos, as missas, as novenas e tinham também as festas em que vestíamos aquelas calças de chitão, os chapéus. Armava-se um arraial no terreiro da Igreja, se enfeitava com bandeirinhas, colocava-se barracas com comidas típicas, a gente dançava as quadrilhas. Ou seja: o processo foi inverso, pois a gente aprendeu primeiro o significado das coisas.
Ainda temos muitos exemplos do que são as festas juninas, mas é tudo mais sofisticado. Não tem aquela aglomeração ou arraiais em grande quantidade, como havia naquela época. É mais difusa. Antes famílias montavam suas próprias festas. Eu cheguei a realizar, mesmo depois de tornar-me padre, festas com mais de 30 barracas. Eram milhares de pessoas que iam para brincar, para dançar. Esse era o valor da coisa: a luz de uma fé transformada em uma manifestação bem simples e popular para agregar a população, sem a pessoa sair dali arrasada com droga, com sexo depravado. Era uma coisa familiar, para todo mundo. Aqui em Aracaju tínhamos e ainda temos aquelas fogueiras nas portas de casa, os arraiais entre amigos, vizinhos e familiares. É o relacionamento das pessoas, isso é valor evangélico. Então ainda temos muitos exemplos do que são as festas juninas.
AAN - Esse valor de reflexão cristã ainda é mantido no período junino também em outros lugares?
Dom Lessa - Em outros países, especialmente em Portugal e algumas áreas da Espanha, se comemora o São João da forma deles, mas em nenhum lugar há essa expressão que há aqui. Portugal tem muito do folclore, essa expressão religiosa feita através de danças. Isso é muito conhecido, difundido e isso se conserva por lá.
AAN - Como o senhor vê os festejos juninos de hoje em dia?
Dom Lessa - Eu vejo hoje o forró das festas e percebo através das músicas e das danças como as pessoas se esqueceram dos verdadeiros sentidos do São João, da dimensão espiritual. Mas não são todos os artistas que entram nessa análise. Ainda tem muita coisa séria aí. Fora esses casos, em muitas canções o tipo de letra feita é de forma maliciosa, com duplo e terceiro sentidos. Essa é uma corrupção de tudo isso que a história dos festejos juninos construiu.
Isso acontece com o São João e o Carnaval, que significa a preparação para a Quaresma, quando o homem se renova por dentro até a chegada da Páscoa, que é aquela grande explosão de vida. E o ‘mundo' abraçou isso aí e transformou no que é hoje e vem pisando nos valores das pessoas e jogando fora o que temos. É muito mais um evento para vender e o grande risco hoje é esse consumismo, esse secularismo. Só se olha as coisas desse mundo, tentando reduzir o espaço do sagrado, do religioso, do divino. Valorizamos apenas o que os olhos vêm, o que os sentidos tocam, como se fôssemos bichinhos - nós não somos bichinhos! Nós temos algo dos bichinhos, mas somos homens! Fomos criados à imagem e semelhança de Deus e dentro de nós há algo de eterno que não há no resto a criação.
AAN - Essa modificação ao longo do tempo pode acabar com o São João como conhecemos? Como o senhor imagina que será daqui pra frente?
Dom Lessa - Eu acho que as festas continuarão, mas o que nós temos que trabalhar é o sentido que as pessoas dão a elas. Hoje fazem alarde das músicas com dois ou três sentidos, maliciosas, para mexer com o lado das paixões, e tudo isso degrada. As pessoas não saem daquelas comemorações construídas, saem dali feridas por dentro, em seu âmago, em sua moral. E quando as pessoas vão assim por aí afora, é gravidez daqui, embriaguez de lá, agressão, desrespeito, crime... Acho que temos que trabalhar é a consciência da sociedade com relação aos valores que o homem deve assumir para governar, conduzir, reger a sua vida; passar os valores do evangelho, de Deus, que estão aí para tomarmos ciência.
AAN - As festas, a dança e a bebida atrapalham os planos de Deus e da Igreja para as pessoas?
Dom Lessa - Claro que não há problema em haver festa. Jesus também gostava de festa e ele foi a festas, inclusive com vinho, que era uma bebida nobre daquela época. Ele até foi com Maria e os apóstolos às Bodas de Caná [passagem bíblica narrada no Evangelho de João, capítulo 2, versículos de 1 a 11]. Deus não é contra a bebida, é contra a forma como as pessoas usam a bebida, quando consomem em excesso e se destroem, destroem as outras pessoas. Em si, a bebida, com moderação, é um dom de Deus também. É uma forma de celebrar, de comungar. O problema é também que há pessoas com uma predisposição a se viciar no álcool e elas precisam trabalhar para não se deixarem vencer.
AAN - E qual a diferença que o senhor vê nos festejos juninos de Sergipe, em particular de Aracaju, para os de outros lugares do Brasil?
Dom Lessa - Eu vivi no Rio de Janeiro durante 38 anos e estou em Sergipe há 21. Sinto que esse estado é um dos que ainda guarda muitas das tradições na dimensão religiosa e as festeja com entusiasmo. Mas isso está passando por uma evolução diante dessa modernidade, onde se perdeu o contato com o sagrado e as pessoas vão perdendo os valores. Não sei se nós vamos sofrer muito nesses últimos anos. Fatores como a violência e a degradação humana vêm afastando as pessoas no interior, e também na capital. Esses elementos são alguns dos que vão afastando as pessoas do convívio social.