Prefeitura busca coibir violência obstétrica

Agência Aracaju de Notícias
08/05/2018 09h00
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Ao fundo, uma música instrumental dá o tom de serenidade. Uma sala bem preparada, com bons equipamentos, profissionais atenciosos e, na mesa de parto, uma mulher com olhar sublime e expressão tranquila. No momento em que o bebê chega ao mundo, toda a equipe médica vibra enquanto a mãe chora com um sorriso nos lábios e a música instrumental sobe mais um tom para reforçar o momento de emoção. Do lado de fora, alguns familiares e amigos aguardam o momento em que o médico obstetra dá a notícia do nascimento, todos envoltos em muita comoção e expectativa.

Normalmente, é assim que acontece nas novelas, nos filmes de Hollywood. A maternidade sendo romantizada do momento da descoberta da gravidez até o primeiro choro do bebê. Na vida real, entretanto, as histórias são contadas de outras infinitas formas e, em muitas delas, o processo tem dor e também experiências capazes de causar danos físicos e psicológicos. Para grande parte desses casos, contudo, há por trás o que se classifica como violência obstétrica, situação pela qual Beatrize Oliveira, hoje com 19 anos, passou e teve sua experiência relatada em um documentário sobre o assunto.

Aos 17 anos, vivendo as incertezas que a própria adolescência traz consigo, Beatrize descobriu a gravidez e não recebeu a notícia como um presente, pelo contrário, na época, era um fardo.  Apesar de hoje amar o filho de quase dois anos, o processo da gestação não foi fácil.

"Eu não tinha plano de saúde na época e fiz minhas consultas de pré-natal pelo particular e cheguei a fazer um plano de parto, mas era muito caro para a condição que eu vivia. A médica que fez o plano de parto nem me deu meu cartão de gestante porque só daria se eu fizesse o parto com ela. Quando cheguei à maternidade isso complicou porque não sabiam nada sobre como estava a gravidez, a não ser pelos exames que fiz e que eu carregava numa pastinha", contou.

Quando estava na 37ª semana de gestação, a médica que acompanhava a gravidez de Beatrize alertou que ela possuía pouco líquido amniótico e, por isso, o parto precisaria acontecer em menos de 24 horas ou o bebê não resistiria. No entanto, na maternidade pública em que a jovem deu à luz, o procedimento foi induzi-la ao parto normal. "Sei que o parto normal é o mais indicado, porém, a médica já tinha orientado a parir o quanto antes. Eu não tinha noção de quanto tempo eu ficaria sendo induzida ao parto e foi angustiante. Na sala em que estava, outras 15 a 20 mulheres também estavam. Vi situações em que uma delas já estava há quase uma semana sendo induzida ao parto e sofrendo muito. Outra abortou na sala. Uma das coisas que mais me espantou foi o fato de que a maioria dos profissionais era mulher, e elas tratavam as gestantes muito mal. Tinha muita grávida da mesma idade que eu, e até mais nova, e éramos tratadas com muita ironia. Não existia empatia. Eu presenciei de tudo. Existia um julgamento como quem diz que ‘na hora de fazer ninguém sentiu dor'. Ouvi de um profissional se referindo a uma gestante ‘ah, mas esse já é o terceiro', como se estivesse invalidando o que ela estava sentido. Tudo isso foi um absurdo difícil de tolerar e cheguei a ouvir de outra gestante que, se a gente reclamasse, poderia ser pior", relatou.

Quando Beatrize pariu, a maternidade estava lotada, segundo o seu relato, ela ficou em um quarto com paredes mofadas, ao lado da área de serviço e de convivência dos funcionários onde, por vezes, o barulho incomodou tanto a ela quanto ao bebê. "Durante o processo do parto, ninguém me explicou nada do que estava acontecendo, eu não fui esclarecida sobre nada. Nos dias em que fiquei na maternidade, eu não recebi instrução, eu não fui orientada. Por falta de instrução, muitas gestantes acham que esse tipo de tratamento é normal. Eu já ouvi histórias piores, muito piores, de mulheres que tiveram seus corpos violados, outras que deixaram de ser atendidas, que quase morreram por negligência. O meu desejo é que essas histórias não se repitam", desabafou.

Afinal, o que é violência obstétrica?

Relatos como o de Beatrize são comuns a muitas gestantes.  Seja na dificuldade em ter acesso às consultas e exames do pré-natal, passando pelas agressões verbais, até situações de violação do corpo da gestante, os casos de violência obstétrica são muitos e não podem ser naturalizados e nem postos como uma condição para o fato de ser mãe.

Um dos fatores que pode começar a modificar o cenário, segundo a coordenadora do Programa de Saúde Mulher, da Secretaria Municipal da Saúde (SMS), Cristiani Ludmila Borges, é o trabalho de empoderamento da mulher. "Precisamos investir no empoderamento feminino, na educação da menina e também do menino, da adolescente, para que a mulher engravide quando ela quiser, mas com orientação. Faz parte da estratégia no pré-natal passar essas orientações. Muitas pessoas nem conhecem o termo ‘violência obstétrica' e muitas vezes a sociedade associa violência a hematoma, pancada, e é um conceito para além disso. A violência obstétrica pode acontecer em três momentos ao longo da gestação e nascimento do bebê. Tem a que acontece durante a gestação, a que acontece durante o parto e também em situação de abortamento. Para todos eles, é preciso que a mulher tenha conhecimento dos seus direitos e saiba cobrá-los sempre que necessário", afirmou.

De acordo com a Fundação Perseu Abramo, no Brasil, uma em cada quatro mulheres é vítima de violência no momento do parto ou pré-natal, situações que abrangem atos de desrespeito, assédio moral, violência física ou psicológica e negligência. Com o objetivo de reduzir os casos desse tipo de violência, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou uma declaração para prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde e, nesta declaração, destacou que "no mundo inteiro, muitas mulheres sofrem abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto nas instituições de saúde. Tal tratamento não apenas viola os direitos das mulheres ao cuidado respeitoso, mas também ameaça o direito à vida, à saúde, à integridade física e à não-discriminação".

São muitas as situações pelas quais as gestantes passam e, por se tratar de um momento muito frágil, muitas delas simplesmente se calam, ou por não terem conhecimento dos seus direitos, ou por temerem que sejam ainda mais maltratadas, ou, ainda, por estarem tão vulneráveis, não têm estímulo para falar. "Existem os casos do corte do períneo (espaço entre a vagina e o ânus), de parto induzido, de manobra de Kristeller, que é aquela força que colocam na barriga da mulher como se estivesse empurrando o bebê. Há situações de não permitir que a mulher caminhe enquanto está no trabalho de parto, de deixar a mulher em jejum. São muitos os casos, inclusive, a peregrinação para obter atendimento e procedimentos também se configura como violência", destacou Cristiani Ludmila.

Segundo a coordenadora do Programa Saúde da Mulher, os casos mais extremos de violência acontecem, principalmente, com mulheres que sofreram aborto ou as que são soro positivas. "Estas últimas sofrem muita violência, ainda mais quando não sabem que têm HIV e descobrem no momento que faz os exames de gravidez. Já a mulher em situação de abortamento vai ser questionada. O aborto é crime no nosso país, mas, enquanto profissional de saúde, o meu papel não é o de julgar aquela mulher, ela precisa do meu cuidado. Se ela chega sangrando, debilitada, ela passa a ser prioridade, independente do motivo que a levou ali", ressaltou.

Para Cristiani Ludmila, a formação dos profissionais da Saúde também conta muito. "Na rede municipal, corriqueiramente, temos qualificações a esse respeito, quando passamos orientações para seguir aquilo que a OMS esclareceu na declaração, mas, é preciso que olhemos para a formação do ser humano porque, possa ser que aquele profissional tenha tido uma formação universitária excelente, mas, o lado humano conta e muito na atuação. Por isso que reforço que há a necessidade de olhar com cuidado para a educação que damos aos nossos filhos, à maneira como tratamos as mulheres e elas precisam falar, se posicionar, isso também pode ajudar a mudar o quadro", salientou.

Caminhos

A principal informação que a mulher tem que solidificar ao sofrer uma violência obstétrica é a que ela não deve se calar. Após essa informação estar bem consumada, o primeiro passo é procurar a Ouvidoria da Saúde (156) e relatar o ocorrido passando o máximo de informações possível. Além disso, outro caminho a seguir é formalizar uma denúncia pelo 180, que não recebe apenas denúncias relacionadas à Lei Maria da Penha, mas todo e qualquer caso de violência contra a mulher. O mais aconselhado, no entanto, é procurar o Ministério Público para apurar tanto a conduta do profissional como da instituição.

"Entendemos que, por se tratar de um momento delicado, muitas mulheres evitam a exposição do fato, mas, a denúncia e o relato são necessários para que se possa combater esse tipo de conduta e evitar, assim, que outras mulheres sofram o mesmo tipo de violência", alertou a coordenadora.