A Rede de Atenção Psicossocial (Reaps) da Prefeitura de Aracaju, ofertada por meio da Secretaria Municipal de Saúde, conta com seis Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e 14 órgãos de referência em saúde mental – 10 para o público adulto e quatro para o infantojuvenil –, que atendem a todas as especificações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e estão espalhadas em diferentes bairros da cidade, a fim de realizar uma cobertura completa.
Cinco Caps funcionam 24 horas por dia na capital sergipana, realizando acolhimento noturno como opção terapêutica para as situações de crise dos usuários dos serviços. Para as situações que precisam de uma internação ou casos de urgência, há ainda a Urgência Clínica e Mental do Hospital São José, localizado na zona Norte de Aracaju.
Essa estrutura, somada à mão de obra qualificada e diversa, é responsável por ofertar atendimento a mais de 8.500 pacientes ao mês, entre os seis Caps e as 14 unidades de referência. As ações vão desde oficinas de teatro e atividade física a arte e atividades lúdicas que dão sustentação a uma política pública de saúde mental efetiva e eficaz.
Durante o mês de setembro, com a implementação do 'Setembro Amarelo', esse aparato ganha ainda mais notoriedade, em virtude da campanha de prevenção do suicídio, um dos problemas mais sérios enfrentados por quem convive com as questões de saúde mental.
Notificações
O atendimento dessa rede começa com a notificação da tentativa de suicídio. Segundo Lidiane Gonçalves, área técnica do Núcleo de Prevenção de Violência e Acidentes (Nupeva) da Secretaria da Saúde de Aracaju, etapa importante para a identificação do problema como questão de saúde pública. “É um instrumento de vigilância disparador de cuidado e que serve para dar visibilidade ao problema”, afirma Lidiane.
Entre 2008 e o dia 9 de setembro de 2019, foram registrados 355 notificações de casos de suicídio em Aracaju, sendo que 258 deles foram provocados por homens e 97 por mulheres. A maioria na faixa etária entre 20 e 29 anos; seguidos de 40 a 49 anos; 30 a 39 anos; 50 a 59; 15 a 19; 60 a 69; 70 a 79; 10 a 14 e acima de 80 anos.
Os bairros com maior incidência são o Santa Maria, com 33 ocorrências nesse período; São Conrado, com 31; Farolândia, 22 casos; Olaria, 13; Jabotiana e Santos Dumont, ambos com 12; América e Atalaia, com 11; Coroa do Meio, Centro e Cidade Nova, com 10 casos, seguidos pelo bairro Industrial, com 9; Getúlio Vargas, com 8; Siqueira Campos e Bugio, com 7; Soledade, Lamarão e Luzia, com 6.
Os demais bairros registraram entre 1 e 5 casos, mas todos tiveram ocorrências de suicídio nos últimos 11 anos. “A partir do momento em que a gente recebe a notificação, é disparado o aviso de cuidado da equipe de saúde mental, para fazer a busca ativa e ofertar o tratamento necessário”, explica Lidiane.
Segundo a técnica do Núcleo de Prevenção de Violência e Acidentes, a notificação é importante tanto para possibilitar o atendimento e, com ele, evitar uma nova tentativa de suicídio, quanto para traçar as estratégias de atuação da rede municipal. Por isso, há uma atualização constante com os profissionais de saúde que atendem nos diversos serviços – UBS, urgência e emergência, Cemar, Caps – para que notifiquem os casos suspeitos ou confirmados de violência.
O próprio médico, os enfermeiros, assistentes sociais ou agentes comunitários de saúde podem fazer a notificação. “Casos de tentativa de suicídio precisam ter notificação imediata, como determina a lei. No máximo, em até 24h tem que ser comunicada, até porque a pessoa pode tentar novamente. Se o profissional ficar no cuidado e não notificar, a violência pode se repetir”, reitera.
A partir desse levantamento das notificações, a equipe vê quais regiões, perfis e população demandam uma intensificação das ações de prevenção. “Outro ponto importante é investigar, na medida do possível, as causas que estão por trás dessas tentativas de suicídio, pois é fundamental tentar traçar o diagnóstico, com um perfil mais real daquele território e, assim, definir ações estratégicas de prevenção”, reforça Lidiane.
Setembro Amarelo
Para ela, os índices de casos registrados entre 2011 e 2019 são um sinalizador importante. “Os profissionais estão mais sensibilizados e, portanto, notificando mais. Isso serve para fortalecer a integralidade do atendimento, que vai desde o primeiro contato, até o diagnóstico, a notificação e o encaminhamento em rede”, avalia Lidiane, ao acrescentar que não se pode “naturalizar ou banalizar o que está por trás dessa situação”.
Apoiadora institucional da Rede de Atenção Psicossocial (Reaps) da Secretar, Mairla Protázio explica que o Setembro Amarelo decorre exatamente dessa necessidade. “A gente precisa falar sobre o suicídio, não pode continuar sendo um tabu, porque pessoas morrem, pessoas sofrem caladas e sozinhas. O sofrimento psíquico e emocional é uma realidade, então, a gente precisa falar de forma educativa. O assunto precisa vir à tona”, afirma.
De acordo com Mairla, são muitas as ações realizadas para abordar esse tema. “A atuação é quase diária nas escolas, nas UBS, nos Caps, não só para sensibilizar, mas para ouvir e capacitar, deixar o profissional qualificado, pois não é uma abordagem fácil”, ressalta. Ericka Henriques Guerra, coordenadora do Serviço Residencial Terapêutico e Consultório na Rua, concorda.
“A rede é o canal de comunicação com o profissional e com as pessoas que estão em sofrimento psíquico, porque é muito difícil falar sobre isso. E a partir do momento em que intensificamos as ações, mostramos que tem gente pronta a ouvir essas pessoas e também serviços especializados para tratá-las”, observa.
As ações nesse sentido são frequentes e ainda mais comuns durante o ‘Setembro Amarelo’. “Identificamos as escolas com alto índice de notificações de casos de automutilação e tentativa de suicídio para realizar palestras e rodas de conversa com os professores e alunos, além de uma ação com os profissionais do Fernando Franco, hospital que mais notifica casos de tentativa de suicídio”, revela Ericka.
Para além disso, durante todo o ano, as equipes dos Caps recebem as notificações e realizam a busca ativa, que consiste em ir até a casa da pessoa com uma equipe de saúde ou do Caps para ofertar o tratamento.
Atendimento
“A equipe vai até lá e se coloca à disposição para ofertar um serviço de saúde, pois quando há uma tentativa de suicídio, há a iminência de ter tantas outras. É feita a inserção no próprio serviço de saúde, nos Caps e começa o acompanhamento com profissionais do núcleo social, como psicólogos, assistente social, terapeuta ocupacional, com consulta médico especializada ou clínica. É uma ação continuada”, explica Mairla.
Segundo Ericka, também existem os grupos psicoterapêuticos nos próprios atendimentos individuais com as equipes de psicólogos do Caps. Já as referências de saúde mental são as equipes de psicólogos e psiquiatras que atuam nas Unidades Básicas de Saúde. “Portanto, temos a retaguarda do trabalho desses profissionais que estão no território, nas unidades de saúde, ou seja, em locais mais próximos da população”, ressalta.
A partir dessa relação, o usuário é integrado ao serviço e a equipe avalia o perfil dele: o que ele precisa, o que motivou a tentativa. Em seguida, é construído um Projeto Terapêutico Singular (PTS), voltado exclusivamente para esse usuário. “Então é definido de que forma ele será beneficiado nesse serviço, o que será adequado para ele”, reitera Ericka.
Aliás, a família do usuário também é integrada, como ocorreu na quinta-feira, 19, no Caps Jael Patrício de Lima, quando a unidade promoveu, entre as ações do Setembro Amarelo, a oficina “Cuidando do Cuidador”, voltada exatamente para os familiares e responsáveis de quem convive com o sofrimento psíquico.
Loreni de Alcântara Lima é responsável por um dos usuários e participou da oficina. Segundo ela, o tratamento, realizado há três anos no Caps, tem sido fundamental para o progresso da paciente. “Ela gosta muito das atividades, participa bem”, reconhece Loreni.
Para Loreni, esse envolvimento da família é muito importante. “Tem que acompanhar, porque o familiar tem que ser psicólogo, tem que ser clínico, tem que ser tudo, então, para isso, ele tem que buscar esclarecimentos. Sei que muitos têm essa dificuldade, mas eu sempre busquei essa dedicação em prol do tratamento dela”, ressalta.
Laís Almeida é a coordenadora do Caps e diz que o Grupo de Família faz parte das atividades cotidianas, mas que teve temática específica em alusão ao Setembro Amarelo. “A gente entende que não para trabalhar o cuidado apenas do indivíduo, pois ele tem relações sociais e familiares”, diz Laís.
O público-alvo do Caps Jael Patrício de Lima é exatamente a população em sofrimento psíquico grave, severo e persistente, que apresenta alto índice de tentativa de suicídio. “Aqui, nós temos um projeto de valorização da vida que acontece o ano inteiro, o Vida em Festa, exatamente para prevenir o suicídio nesse contexto social e territorial”, explica.
Valorização da Vida
Assim como essa, a maioria das oficinas aborda a valorização da vida, em vez de focar apenas na tentativa de suicídio. “Temos serviços pulverizados em toda a cidade. Temos vínculo com o Cras, com a Fundat para oferecer cursos, porque às vezes a pessoa não sabe o que quer e isso cria um sofrimento muito grande. Temos atividades com o terapeuta ocupacional, a equipe de enfermagem, etc”, elenca.
Tudo isso, para Mairla, aumenta o leque de possibilidades de vida daquela pessoa. “Temos trabalhado muito com essa potência de valorização da vida. Nossas oficinas e o nosso trabalho precisam falar sobre essa valorização, sobre a potência que a vida tem. E quando vamos ver o que está por trás dessas tentativas de suicídio, de certa forma trabalhamos outras formas de prevenção ao longo do ano com outras temáticas que podem ser responsáveis”, acredita.
Essas temáticas são, por exemplo, a masculinidade tóxica – por conta do alto número de suicídios do sexo masculino; exploração sexual infantil, empoderamento feminino, identidade de gênero, etc. E como mensurar se essa abordagem, esse cuidado e esse tratamento estão sendo eficazes?
“A gente recebe retorno de pais, por exemplo. O último deles ocorreu no início do mês, quando uma mãe nos procurou para relatar que o filho dela, que já passou por uma tentativa de suicídio, estava bem e conseguiu, inclusive, participar do desfile cívico. Mas nem sempre conseguimos mensurar o sofrimento psíquico em números, então, a fala e, principalmente, a manutenção da vida deles em si é que nos dão esse feedback”, observa Mairla.