A rede pública de saúde, na maioria das vezes, é a primeira porta que mulheres vítimas de violência acessam à procura de algum tipo de assistência. Quando não cessada a situação, elas passam a ser usuárias reincidentes dos serviços dessa rede.
Para tanto, em Aracaju, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) possui o Núcleo de Prevenção de Violências e Acidentes (Nupeva), setor que trata, entre outras demandas, da formação e sensibilização de profissionais, desde a recepção ao atendimento médico, para que a mulher em condição de vulnerabilidade receba um olhar ampliado, com atenção e cuidados especiais.
De forma geral, o Núcleo promove a articulação entre a rede de proteção a pessoas em situação de violência, como detalha a responsável técnica do Nupeva, Lidiane Gonçalves.
“O nosso trabalho primordial é fortalecer a atuação profissional de saúde no acolhimento a essas mulheres, no diagnóstico, na assistência, no cuidado, na notificação de violência e encaminhamento para a rede de proteção, seja esse profissional enfermeiro, médico, agente comunitário de saúde, agente social, afinal uma mulher em situação de violência pode chegar para qualquer categoria profissional e todos precisam estar preparados. O setor de saúde não se resume ao atendimento assistencial, ao cuidado de lesões de mulheres que sofrem violência física ou a patologias decorrentes delas, como síndrome do pânico, ciclo hipertensivos, anorexia. É muito importante esse sistema de vigilância”, afirma.
A responsável técnica destaca que a atuação perpassa pela análise de dados oriundos das notificações, instrumento do Ministério da Saúde. “Vale destacar que notificação não é o mesmo que denúncia. Denúncia envolve responsabilização do agressor e a notificação realizada pelo profissional de saúde é um instrumento epidemiológico, que serve para mapear dados e nortear o cuidado e, claro, para encaminhar para a rede de proteção. Então, essa vigilância de dados, notificação dos casos, faz parte de uma atenção integrada, porque a saúde por si só não dá conta do problema, tem que ter a segurança pública, com o controle social, sociedade civil, enfim, é a promoção da saúde, o trabalho de prevenção”, acrescenta.
Para que a rede de saúde atue de forma coesa, um fluxo de atendimento foi criado. No momento em que a mulher busca a Unidade Básica de Saúde (UBS), após o atendimento, a equipe de Saúde da Família mantém o acompanhamento dessa usuária vítima de violência. Quando a mulher necessita de Atenção Especializada, esse trabalho é realizado pelo Centro de Atenção Psicossocial e Unidades Básicas de Saúde referência em saúde mental, bem como através do Centro de Especialidades de Aracaju (Cemar Siqueira Campos), com aconselhamento e testagem para sífilis e HIV, tratamento de HIV e medicamentos específicos.
“Também está inserido nesse fluxo o trabalho intersetorial realizado pelo Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), para atendimento dessas mulheres em situação de vulnerabilidade ou que tiveram seus direitos violados”, pontua Lidiane.
Por trás de todo o atendimento, há situações delicadas, quando uma mulher não se sente à vontade para falar sobre a violência sofrida ou mesmo quando nem se dá conta que vive uma relação abusiva, por exemplo. "São casos e situações diferentes", salienta.
“Um dos pontos principais é ficar sempre atento aos sinais, porque nem sempre o relato da mulher condiz com a realidade. Não são mulheres que chegam aos nossos serviços falando. Acontece de o relato ser muito contrário aos sinais físicos, muitas vezes por medo, por receio do futuro. Então, o profissional precisa ter um preparo, sobretudo para não julgar aquela mulher que já está fragilizada”, enfatiza Lidiane.
Resultados
A responsável técnica ressalta ainda que, apesar de haver muita subnotificação, os dados obtidos são relevantes, pois são norteadores para políticas públicas.
“Mesmo sabendo que existe subnotificação, vemos que o número de notificações tem aumentado, ao longo dos anos, e isso não quer dizer necessariamente que a violência está aumentando, mas que mais mulheres estão procurando e encontrando uma rede de apoio e, assim, tomam coragem para buscar serviços e denunciar”, aponta Lidiane.
Conforme os dados do sistema VIVA/SINAN, do Ministério da Saúde (MS), de 2011 até o momento, foram registradas 2.325 notificações na rede de saúde de Aracaju relacionadas à violência contra as mulheres; o ano de 2022 foi o que compilou mais notificações, um total de 388. Em 2023, já há 74 notificações.
Fazendo um recorte por idade, a faixa etária dos 20 aos 29 anos é a que apresenta mais notificações, 1.105, seguida da de 30 a 39 anos, com 646. No segmento raça/cor, a população de mulheres pardas foi alvo de maior número de notificações, 777, seguida da população preta, com 162.
“São os mais variados tipos de registros, mas a maioria é de violência física e violência autoprovocada. E aqui chamo a atenção para o número de tentativas de suicídio que tem crescido, pelo menos nos registros. São mulheres que adoecem mentalmente, muitas depressivas, sendo que essas tentativas de suicídio, em algumas situações, estão ligadas a situações de violência. Tenho o caso de uma jovem de 14 anos que foi abusada em 2020 e tentou suicídio três vezes, por exemplo. Então, são violências que geram adoecimento mental, que levam essas mulheres jovens, meninas a tentarem suicídio”, salienta Lidiane.
Em Aracaju, os bairros em que mais houve notificações foram Santos Dumont, Santa Maria, Jabotiana, Cidade Nova, José Conrado de Araújo e América.
“Não existe uma classe social específica, em todas as classes são registrados casos de violência de algum tipo e, ainda, são violência que acompanham a vida. As mulheres sofrem violência nas diferentes fases da vida. Na infância, os principais agressores são pais, tios, avós, vizinhos. Na fase adulta, o cônjuge ou a mulher que tenta tirar sua própria vida. Na fase idosa, são os filhos. A violência, na maioria dos casos, acontece dentro de casa, lugar onde a mulher deveria se sentir protegida e acolhida. Por isso que o trabalho da rede é tão minucioso e precisa de cautela e, sobretudo, de formação. É nisso que o Nupeva trabalha: qualificar as equipes de saúde para melhor atender as vítimas de violência e ser o suporte que elas precisam no momento mais difícil”, ressalta a responsável técnica.