Pessoas trans têm dignidade reconhecida com retificação de nome e gênero

Agência Aracaju de Notícias
20/04/2022 14h23

“Agora, não terei mais vergonha de ser chamada por um nome que não é meu”. A frase foi dita por Layra Renata, de 20 anos. Ela é uma das mais de 300 pessoas trans ou travestis que retificaram seus nomes, em Aracaju, e, hoje, aguardam a chegada dos novos documentos, com o nome fazendo jus à foto em destaque.

No ano de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que pessoas trans ou travestis podem alterar seu nome e sexo no registro civil sem que se submetam à redesignação. Na decisão, foi invocado o princípio à dignidade humana e reforçado que todo cidadão e toda cidadã tem direito de escolher a forma como quer ser chamado ou chamada. Hoje, mesmo com os desafios ainda existentes, pessoas trans ou travestis podem definir por qual nome marcarão sua trajetória na sociedade e no mundo.

Em Aracaju, a Prefeitura, através da Secretaria Municipal da Assistência Social, assegura todo o suporte a esse público, que pode contar com a Assessoria LGBTQIA+ em todo o processo de retificação de nome e gênero. E foi com esse apoio que Layra percorreu os caminhos para ter o tão sonhado documento reafirmando quem ela, de fato, é e sempre foi.

“Eu tinha 15 anos quando abri meu guarda-roupa e não me via naquelas roupas. Esperei um ano e, aos 16, contei à minha mãe, convicta de quem eu sou. Expliquei a ela todo o processo que eu iria passar para eu poder me transformar, por fora, no que eu já era por dentro. Minha mãe foi essencial pra eu ser quem eu sou. Foi ela quem me ajudou no processo de transição, quem me ajudou a chegar à Assessoria para retificar meu nome, foi ela quem me incentivou. Quando íamos a consultórios médicos, minha mãe era quem explicava que eu sou Layra. Graças a ela, tive coragem para dizer para todo mundo quem realmente eu sou”, conta Layra.

Para Layra, é importante poder contar com o poder público nesse processo, mas, ter apoio dentro de casa é essencial.  “Porque, quando se tem isso em casa, a gente não liga para o que tem fora, a gente sabe pra onde voltar”.

Há dois meses, a jovem desistiu de um emprego porque não se viu no crachá.

“Eu ia trabalhar com o público. Recebi a farda e o crachá. Neste crachá, estava a minha foto com a minha aparência feminina, mas o meu nome masculino. Quando eu vi, disse ‘não vai rolar’. Eu não aceitei isso. Desisti do emprego por algo maior, a minha identidade”, conta Layra.

Na escola onde estuda, o desafio ainda é grande. “Uma das professoras não quer colocar o meu nome feminino na chamada e eu já pedi várias vezes. É o meu direito e dever da escola aceitar o meu nome social. Agora, terei meus documentos. Nós, meninas trans, somos pessoas comuns. Não é o fato de sermos trans que somos pessoas diferentes. Temos sangue correndo pelas veias, sentimos dor, temos sentimentos. Temos que ser respeitadas por quem somos. Sou Layra e é assim que quero ser chamada”, frisa.

Basta

“Eu era espancada todos os dias, em casa, por meu pai. Na minha família, muitos falam que me aceitam, mas, no dia a dia, eu vejo que não. Até hoje meu pai não me aceita e só me chama pelo nome de batismo. Muitas vezes já gritou dizendo que não sou mulher, que isso é coisa de ‘marica’. Quando se tem o preconceito de fora e ainda não é aceita pela família, fica ainda mais difícil seguir em frente, mas estou seguindo. Ou eu ficava lá ou saia para enfrentar o mundo. Decidi enfrentar o mundo. Saí de casa aos 15 anos. Sou a minha própria fortaleza. Eu caio, eu levanto, e crio as minhas forças para levantar. Sou eu mesma quem me abraço e sigo”, revela Laura Antoniele Macêdo dos Santos, hoje, com 23 anos, casada e independente.

Ela conta que, desde criança já tinha interesse pelo universo feminino e, com o passar do tempo, foi entendendo quem era e até chegou a não se aceitar, por um momento.

“Olhava no espelho, via que não queria ser aquilo, mas o medo ainda falava mais alto, o medo de como eu seria vista pela sociedade. Um dia, deu o clique e eu sabia que eu não queria mais ser o que eu não era. Nos meus 15 anos, optei por não viver mais escondida”, conta Laura ao fazer um apanhado do passado. “Já cheguei a ser chamada num posto de saúde e, na época, não era retificada, mas já era uma mulher. Pedi para ser chamada por Laura e tinha a recomendação no meu prontuário e, ainda assim, a atendente do posto me chamou pelo nome de batismo por três vezes. Aquilo foi um grande constrangimento. Não queria mais passar por aquilo”, relembra.

Para Laura, a retificação de nome e gênero ajudou a compreender o seu lugar no mundo, “pois o temos. É uma satisfação muito grande ter o nome retificado e ser reconhecida pelo que você é”.

Sonho

“Um dia, antes de retificar meu nome, sonhei que meu pai me chamava por Vitória e achei que aquilo fosse um sinal, algo que me dizia pra não desistir. É uma conquista, tira um peso. Agora eu posso chegar e dizer que Vitória é o meu nome. Alguns professores ainda me chamam pelo nome de batismo, agora, eu vou ter o meu nome no documento. É muito bom saber que existem serviços que nos acolhem e, principalmente, que tem gente da família que acolhem. Meu nome remete a essa conquista, no entanto, ser reconhecida pelo nome é o básico”, afirma Vitória Santos Oliveira, de 23 anos.

Estudante de Ciências Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS),Vitória chegou a trancar o curso por conta do processo de transição e também por sentir os efeitos da pandemia. Hoje, ela se enxerga no mundo.

“Em 2019, me percebi diferente do que via no espelho e foi graças à convivência com outras amigas trans que passei a me questionar. Sempre fui muito feminina e, muitas vezes, me olhava no espelho e não me sentia bem, não gostava do que via. Um dia, chegaram pra mim: ‘e se você for trans?’, e eu ‘será?’. Comecei a pesquisar, procurar referências e comecei a me identificar. Sabia que eu não era sis, eu não gostava do que via, não me sentia confortável. Quando a gente é mais nova, a gente não entende. Com o tempo, vamos compreendendo como a gente se identifica no mundo”, relata Vitória.

No processo, ela lembra que ainda hoje não é fácil impor sua existência, até mesmo dentro de casa, mas a retificação do nome foi um divisor de águas.

“Busquei como fazer a transição, os tratamentos, enfim, e, em seguida, me dei conta de que precisava falar com a minha família. A gente passa por esse processo de conversar com a família duas vezes, pelo menos: quando a gente acha que é uma coisa e quando percebe que não é isso, e sim, uma menina. Meu pai, até hoje, não aceita, não me reconhece como Vitória. Minha mãe é mais tranquila, mãe é mãe, ela me pariu, me ama do mesmo jeito. Tenho uma irmã mais velha e sobrinhos que me chamam de Vitória e isso é muito bom porque existem outras Vitórias que não sabem o que é isso. Ter meu nome nos meus documentos me abre os horizontes e me fortalece para o que ainda quero buscar”, desabafa.

Assessoria

Parte da Diretoria dos Direitos Humanos (DDH) da Secretaria Municipal da Assistência Social, a Assessoria LGBTQIA+ já auxiliou a retificação de nome e gênero de mais de 300 pessoas trans ou travestis.

Para o assessor técnico de assuntos LGBTQIA+, Marcelo Lima, a procura pelo acompanhamento representa a efetividade do serviço, mas vai além. “Não é um processo simples. Retificação de nome e gênero mexe com toda a vida da pessoa, mexe com o como a pessoa se vê e como ela se construiu. A sociedade foi formada fazendo um resumo de gênero em vagina ou pênis, e não é. Gênero é como você se construiu ao longo de sua vida. Ainda hoje, há dificuldade de entendimento na questão de retificação de nome e gênero, com muita burocracia, mas o que move é garantir a dignidade humana”.

De acordo com ele, cada pessoa é acompanhada lado a lado “porque existem muitos processos para dar conta e, por isso, sempre estamos ao lado. Nosso setor cumpre um papel fundamental na inclusão social, acesso à cidadania e garantia de direitos às políticas públicas, pois o serviço também é procurado por pessoas de outros municípios”, acrescenta.

O assessor técnico frisa que ainda há um longo caminho a ser percorrido, sobretudo com relação à quebra de preconceitos que envolve a luta contra a transfobia, no entanto, a possibilidade da mudança de nome e gênero é um ponto a se comemorar.

“Essas pessoas voltam pro espaço social com o seu nome, aquele com o qual se identificam e se colocam no mundo. Eleva a autoestima, eleva a vontade de buscar seus direitos e cobrar o cumprimento deles. E, na verdade, não é só o nome. Envolve, por exemplo, a segurança da pessoa. As mulheres trans podem ser protegidas pela Lei Maria da Penha porque, oficialmente, são mulheres. Envolve a empregabilidade, envolve dignidade, entre outros fatores essenciais para a vida”, completa Marcelo.

Onde encontrar?

Para ter acesso a informações, dar início ao processo de retificação de nome e gênero e acessar outras políticas públicas basta comparecer na Assessoria LGBTQIA+, situada no prédio da Estação Cidadania, na rua Pacatuba, 64, Centro, das 8h às 13h, ou pelo telefone (79) 99123-1555.

Denúncia

Ao sofrer transfobia, atitudes discriminatórias contra pessoas transgênero, as denúncias podem ser feitas para a Delegacia de Atendimento a Crimes Homofóbicos, Racismo e Intolerância Religiosa (Dachri), vinculada ao Departamento de Atendimento a Grupos Vulneráveis (DAGV), pelo número (79) 3205-9400, ou na Assessoria LGBTQIA+, também pelo (79) 99123-1555.